quinta-feira, abril 02, 2015

ser mulher - notas íntimas sobre um capitalismo de gênero

Assunto para lá de velho, mas nunca obsoleto. Agora quero eu falar disso do ponto de vista de alguém que tinha e tem como olhar externo alunos, colegas em vários cantos do mundo, amigos, amados, amantes, marido etc etc etc. E duas mulheres que sempre me apresentaram uma série de perspectivas sobre a existência que me foram, desde sempre, problemáticas. Sempre foram problemáticas, para mim, suas versões sobre ser isso ou aquilo, seus inúmeros preconceitos e, portanto, suas muitas certezas. Sempre foi problemático, para mim, o ponto de vista delas. Falo dela e dela, duas parcas em minha vida (a terceira é isso, sou eu, meu id). Ambas sempre me amaram muito. Cuidaram de mim na infância e juventude como se eu fosse um objeto a ser acompanhado para o desabrochar em flor. Mas flor daquelas bem cheias de cores e odores, a mais diferente do jardim, aquela flor capaz de orgulhar a dona - e, quem sabe, causar inveja nos (nas) outros (outras) admiradores (admiradoras). Ou seja, nasci para ser isso: objeto com o qual elas (ela e ela, minhas duas parcas) poderiam empunhar espada ou bandeira na manutenção de um território do existir. Do existir como mulher. Essa mulher. Excessivamente essa coisa ostensivamente feminina ("ando sempre com um batom na bolsa") para surgir nos salões de braços dados com um homem (o "meu") com quem colocaria filhotes no mundo. Um capitalismo feminino. Uma acumulação de capital simbólico para o exercício de um poder legitimado nos salões da pequena burguesia. Nasci para tornar-me essa mulher. No entanto, falhei.

Ela e ela ora me enfeitavam, ora me observavam. No processo de crescimento do meu corpo, fui deixando para trás as sapatilhas de balé, as bolsinhas com espelhinhos, a cor de rosa, as pulseirinhas, os diminutivos e os babados. Conforme ia ocupando espaço no mundo, dava passos rumo ao ambiente dos moleques. Queria estar perto dos homens, brincar com eles, sentir o falo, a língua, o prazer deles. Adorava azul, o jeans, o moletom, a jaqueta, o all star. Eu estava era a fim de saber "qualhera", estar com a galera, poder sentar de perna aberta, gargalhar com a boca aberta, ir contra a corrente, ir além da entrada da baía, pegar ônibus de madrugada e, para tanto, queria usar roupas confortáveis, queria passar desapercebida, ser só da turma e com a turma estar no mundo. Queria que meu corpo fosse tocado e admirado, lambido e cheirado. E eram os moleques ao meu redor que me inspiravam esses desejos. Os meus amigos, os melhores. Mas não queria ter que ser de um jeito, obrigatoriamente, para poder alcançar esse meu principal objetivo. Viver meu id, sem lenço e sem documento. Descobri ali o que queria da vida. Conversar, ampliar as ideias, ir além, e isso só era possível escapando desse procedimento para tornar-se mulher. Era preciso estar com os moleques. Era preciso esse não ser. Isso. Meu interesse eram os homens. Me vestia como eles, pois olhava para eles. Queria come-los todos. Estar com eles. Desejava que eles me quisessem como mulher. A mulher que eu era. A mulher era eu. E sou.

Cheguei aos 40 anos. Sou professora. Estou casada. Não penso em filhos, mas se os tiver, farei o que posso para poder continuar a viver bem, então com eles. Gosto da vida. Sinto prazer em estar com pessoas bacanas. Não tenho paciência para preconceitos. Me estimula e agrada muito entrar em conversas, chegar junto. Me incomoda muito encontros casuais que se transformam imediatamente em conversas com pautas. Onde o ego (e o superego) vem na frente. É o caso dela e dela, minhas parcas, as que me tecem o fio da vida. Como é o caso de muitas outras pessoas - amigas, vale dizer. Ela e ela perderam o fio da meada, o bonde da história. Ao menos da minha. Querem saber como está o meu sofá, se ainda está limpo, se tenho usado a cozinha ou comido fora. Quando as vejo, percebo que me olham como se eu pudesse adivinhar a malícia de seus pensamentos. Não consigo entabular tal cumplicidade. E tento fugir. Ou fico ali, radicalmente consciente de que não vai ter jeito de novo. Não vamos conseguir nos atualizar umas das outras. Pois a pauta é ontológica. Trata do ser. Do ser isso que não sou. Do ser delas. E elas têm certeza que sou elas, e um dia vou vingar.

É uma barra sentir-se sendo algo invisível para o interlocutor. Ser e não ser. O que estou sendo é sempre não ser, pois ainda serei, segundo elas.

Devo admitir: isso também é uma forma de amor.