sexta-feira, janeiro 07, 2005

a menina queria ganhar chão

Amor inacabado não é amor, é obsessão. Ele tentava refazer algo que não seria mais refeito. Se soubesse que era tudo na vida feito constantemente, talvez não se engajasse com tanto afinco na resistência de um momento e deixar-se-ia viver mais que tudo e plenamente.

Ela queria ganhar chão, a menina, pois agora entendia que lhe encurtaram o caminho as cercas morais da criação e de todo um universo onde havia crescido. Era preciso avançar, ir além deixando no chão a bagagem pesada do medo e da culpa, peças que até então contribuíam em sua frenagem, ceifando-lhe o ímpeto de viver sem limites.

- Estavas plena de vida densa! Sentias frissons e entusiasmos diante do mero azul do céu, de uma brisa do leste, da expansão de tuas narinas. E agora? O que fizestes desta capacidade de ser feliz? Escondera-lha do mundo à custa de que? Quem te mandou apagar teu coração, fingir que ele não se doa? Por que, por que deixastes que te cortassem o fio tênue da confiança, essa virtude que nos mantêm abraçados à vida?

Ela pensava em tudo isso que a sua consciência vinha há tempos lhe cobrando. Menos mal: sabendo desses caminhos por onde deixar vagar os devaneios, bastava-lhe ter coragem para deixar o medo e ganhar chão, construir um mundo, fazer crescer gente ao redor de si. Bastava, enfim, refazer o caminho de volta à integridade de seus valores. Pautar-se para seguir viagem, sabida que era já do seu lugar no mundo. Sabida que o tempo das sombras na caverna já era. Sabida que só ela!

Não tardou a se lançar pelas trilhas do mundo, onde quer que as houvesse e de que jeito fossem: picadas na mata, estradas de ferro e rodagem, pontes aéreas e caminhos marítimos.

De tudo o que lera restava-lhe a vaga sensação de que tal consumo havia lhe servido de barreira contra o convívio no mundo. Aliás, erigir obstáculos deste tipo fora até então a sua especialidade. Adquirira vários vícios, desde as drogas químicas até o relaxamento da pupila, cujo condão era torná-la invisível. Tudo o que pudesse fornecer o seu afastamento dos outros ou até de si mesma lhe era conveniente.

De fato restava agora percorrer o mundo. Isolar-se até mesmo da permanência constante no seu espaço familiar. Deixaria o seu quarto, suas plantas; deixaria de acompanhar o crescimento delas. Abdicaria de qualquer relação de intimidade com o que quer que fosse, sem se dar conta dos riscos dessa empreitada. A determinação lhe dava ímpeto, plenos pulmões para assumir os custos altos deste passo dado. Era ela quem distorcia sua ótica da vida – a determinação –, e quem viria mesmo a enraizar o vetor destrutivo que passaria a caracterizar essa pobre menina que agora vinha vindo ganhar chão.

A determinação!

Pelo menos com o passar dos anos ela ia percebendo que as virtudes não existiam puramente. Sua determinação apenas viria efetivar o seu afastamento definitivo do resto do mundo. Ai de quem se aproximasse dela...murcharia na primeira poda.

Pena não mais lembrar o quanto havia banalizado a experiência do encantamento por alguém, do quanto não fazia sentido imaginar o quanto algum certo ser se enquadraria em seus anseios. Tempo em que a fantasia estava no verbo, na ação. Tempo que se foi, engolido e deglutido pelo tempo das credenciais e dos signos de status.

Mas estava determinada: partiria sim. E fazendo o caminho haveria de mergulhar nas profundezas de si mesma até se afogar em algum oceano, em alguma poça, em alguma lágrima. Afogar-se-ia na dúvida e na ignorância do por quê de suas errâncias em erros seus e alheios. Afogar-se-ia para renascer do mar e dos rios, submergir do choro colossal para a constância do firmamento. Oxumaré! E este dia chegaria – sim senhor! –, esse dia chegaria tão logo tomasse consciência – luz interior – de que incerteza não era instrumento adequado para a entrega amorosa. Nesta dimensão, bastava a certeza de se ser e, assim sendo, a vida no enlaço estava já garantida.

“Sem teorias!”, gritava para si. Unicamente a expansão de si no prazer de doar-se absolutamente como uma dízima periódica e receber igualmente assim do si do outro.

A questão era: tinha medo. Bastava cogitar uma recusa para sorrir contidamente. Trazia em si o horror da renúncia e agora a renúncia ganhava terreno.

De bom eram os outros fatos: não precisava mais afirmar nada. Estava conformada com a sua estatura e seu semblante às vezes triste, às vezes soturno, mas freqüentemente simpático – o que lhe abria portas nesse auto-exílio, sempre que necessário.

02 janeiro de 2005.

1 Comments:

Blogger ipaco said...

Acho que a menina já pôs os pés no chão há algum tempo, mas às vezes o caminho na sombra das árvores não nos deixa perceber o dia lindo que faz acima de tudo... Belo texto, Sô!

2:13 PM  

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