quarta-feira, outubro 25, 2006

Cartas exumadas de um futuro mui distante

Querido EL,

Esta cidade aqui já me absorveu de novo. Digo isso porque amanheci gozando nas três manhãs que sucederam o meu retorno. Sonhei muito desde que cheguei, mas a rotina e a paisagem já foram devidamente retomadas e é o alargamento de um certo deserto que me diz isso. Parece até que acabo de descobrir a pólvora ao acatar a hipótese de que essa vasta extensão árida na qual eu me encontro foi cuidadosamente cultivada por mim como modo de me entrincheirar, me esconder de certas insatisfações que não estavam apenas alhures, pero incorporadas nesse ser aqui e tornadas esplendorosas a cada concessão feita ao inferno - que são os outros, evidentemente. Dá no mesmo dizer que para um outro, outro somos nós.

Fernando Pessoa havia escrito em 1933 o que o senhor, Seu L, me ajudou a entender na base da cachaça neste ano de 5762.

[PARA SER GRANDE]

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive
.

De fato, não dá para fazer por menos, sob pena de nem em poça de mijo dignarmo-nos a reluzir. É duro encarar o trabalho que há pela frente. Aliás, como bem diz o poeta, caminhos não há / mas os pés na grama os inventarão. Cabe à mim, e só, me efetivar mais um instante. O que é perfeitamente possível removendo do horizonte o 'pela frente', perspectiva que nada mais é do que protelação justificada da assunção duma concepção de vida existente ainda só no bucho da teoria. Ficou claro?

Tens razão, meu bêbado: a ação faz falta de tirar qualquer um do sério... e acho que tirei alguém desse estado sólido na quinta-feira. É que fui ter com a minha (minha?) Esfinge da rua Santo Amaro para a devolução duma caixa de discos do Joaquim Calado.

Antes que eu resolva descrever para você esse encontro, ou melhor, esse contato, te digo que desdedico tempo para essa história, no sentido de que ela é precisamente essa só na minha cabeça, e o desdedicar-lhe tempo talvez denote que eu aprendi a repartir o pão.

Pois bem: lembrei do teu empréstimo generoso e confiei que o Seu Tranca estaria ali comigo. No lugar das desculpas que você me sugeriu contei que havia viajado contigo (sem dizer nada além do teu nome) e que em 4 dias juntos você concluiu não saber como ele aguentou passar 5 meses com uma mulher que gostava de procurar briga. Isto está no meu caderninho cheio de anotações pescadas nas zonas desse Brasil, veja bem. Acho que lá se foram uns 15 coelhos: eu reconheci esse problema e ele deve ter reconhecido que você foi mais rápido e preciso. Pensando melhor agora, será que com isso procurei novamente um embate? Fato é que, daí, os outros roedores certamente vão tombar com uma boa retrospectiva, caso ele venha a fazê-la ou já a tenha feito.

O mais do encontro, vá saber! Estávamos no bar da esquina, rodeados de gente conhecida, e descrever o que vi, senti, percebi e ouvi vai ter muito do que gostaria que fosse. Mas nem tudo, pois nós, o inferno do outro, sabemos quando o outro usa outros como suporte para performances cujo propósito visa atingir um alheio. Falo de ciúmes!

Seu Tranca estava ali, sim. E me disse que tudo aquilo era atitude de menino. Olhei pro CL, condescedente. Mas, enfim... não saber tudo o que se passa na mensura de cada gesto é ignorar simplesmente tudo! Ainda assim vou tentar dizer-te algo mais a partir de uma ou duas inferências:

1) O homem das (agora) poucas palavras deixava um vazio sonoro mas nunca vazio o meu copo, como se (aí já sou eu inferindo com os meus talvezes) preenchendo-o preenchesse também comigo o seu campo de visão;

2) Ecce homo também pediu licença, tão logo cheguei, para buscar em casa um disco do Bela Bartok que eu supostamente havia trocado de capa. Voltou em minutos com o Bartok trocado e um disco lacrado e recém-lançado do seu quinteto. Dos 2 discos, duas novas conjecturas: o Bartók foi covardemente utilizado como um recurso para estender nossas trocas, visto me ser impossível haver lhe trocado por outro - e o CL, teu amigo, sabe disso. Quanto ao outro disco, ora, fora um belo e significativo exemplo de dádiva.

EL, em breve tô mandando um para você. Pedi a ele. Do mesmo modo, lhe falei do teu livro, que um dia, em breve, estará com ele.

Vocês precisam se conhecer. Mas... vai ser difícil executar nosso projeto de amor à três. Fui firme: disse que independia de mim. Seria simplesmente bom para vocês esse encontro. Ainda mais diante da veemente resposta de que mataria, se fosse um dia fosse qualquer o caso, sem esboçar qualquer expressão além da indiferença pelo o que vinha de enunciar. Vocês dois são feitos do MESMO MOTE!