sexta-feira, novembro 28, 2008

despedir

A verdade é que não sei e descobri essa dificuldade muito cedo, no Jardim de Infância. Nunca me desembaracei dela. Embora muitas vezes ao longo da vida eu tenha tido ocasiões para me certificar que esse não saber era já coisa do passado. Agora, madura e sem medo, posso dizer: só sei que ainda não sei.

Qualquer novo personagem que desponte em minha vida, qualquer par de olhos que se vire para mim principia novamente uma prova, pois de súbito me apego - e nem percebo - e essa experiência relacional, ainda que efêmera, cria em mim raízes. Sou uma esponja, sou uma observadora, eu como com os olhos, eu cheiro com a pele, eu vibro com o hálito.

Essa desproporção da intensidade talvez pudesse ter sido controlada por uma criação escandinava protestante. Mas não dominei o meu moi. Sou apenas uma mulher latino-americana com algum no banco. ... ai... Esse algum é que me mata.

quarta-feira, novembro 26, 2008

A visita de Mme. Pierru

Agora, no lusco-fusco, enquanto eu já ia me entregar à pensamentos que recuperam escombros do passado, alguém impaciente bate à porta. Coisa estranha, pois estou morando 'no estrangeiro'. Alguém bater à minha porta significou alguém me chamar à consciência de que estou habitando sem relações, no momento. Que script. O impacto disso foi ainda mais vertiginoso graças a impaciência desse alguém que batia à minha porta.

Rodei a chave na fechadura um tanto quanto desastrada, como se me sentisse em dívida com esse alguém que sequer supunha quem era. Eu sequer supunha que não tinha relação alguma com esse alguém. Não pensava em nada disso, apenas em abrir logo a porta, como se aquele toque me chamasse para um lugar onde eu existo.

Do outro lado a senhora Mme. Pierru, a senhora de 85 anos e cabelos brancos, com um sorriso nos lábios e outro nos olhos, trazendo nas mãos um cartão postal. Surpresa, demorei alguns segundos até convidá-la para entrar. Tempo suficiente para que ela mesma se convidasse. Mme. Pierru d'un coup, em pleno lusco-fusco, me fez não só existir, mas existir atabalhoadamente. Pensei, num átimo, nem sei mais por que: "E se eu estivesse chorando?". Mme. Pierru me fez pensar nesse pequeníssimo tudo que a vida por vezes tem me parecido, enquanto entrava de chinelos, meia, óculos, cabelos brancos, dois sorrisos e avental sobre o pull verde água em minha sala.

Só me restava sorrir. Ela cantarolou, não sei porquê, "Si tu vas à Riôoo...". Eu completei: "N'oublies pas de monter là haut...". Caimos na gargalhada, eu, com 34, e ela, com 85, em pleno lusco-fusco que, rápido como qualquer lusco-fusco e como Mme. Pierru, já estava virando noite. Eu mais do que sorri: eu ri. Eu gargalhei sem mais e sem esperar mais nada da vida. Aliás, sequer podia esperar Mme. Pierru aqui em casa. Aqui nessa hora. Com um cartão postal nas mãos.

O cartão postal. O cartão postal era do proprietário do meu apartamento. Ele dizia à Mme. Pierru que havia uma nova locatária: eu. E que ela era professora. Sou eu por ora. Ela veio me trazer esse postal. E nele, colocou o seu telefone e o número do seu apartamento. - "Mme. Pierru...". Ela me disse que se chama Bernadette, como a Bernadette de Lourdes. "Je ne suis jamais allé à Lourdes", eu disse. "Au Brésil vous êtes croyante de quel réligion?", ela quis saber. E a conversa foi ganhando um novo rumo. Que logo em seguida ganhou outro, e outro e outro e outro.

Mme. Pierru é trés bavarde, como ela mesma reconhece. Acabei subindo de elevador até a casa de Mme. Pierru. E lhe disse: "não esperava passear de elevador hoje". E rimos novamente.

Esse mulher de 85 anos veio de algum lugar alegrar a minha tarde douta. Há um ano ela perdeu o seu ami. Ela não teve filhos, portanto não tem netos. Me falou que vive sozinha, mas não se aborrece porque sempre tem uma gaveta para arrumar. Nos olhamos, pupila à pupila, sem análise. E rimos do pragmatismo que nos unia e nos unia naquele riso. Rimos, então, mais ainda.

O cuco cantou. Lembrei do meu cuco no Brasil. E como falássemos de uma hora que havia sido cantada, falávamos do tempo falando do cuco. Ela me contou em duas frases que algumas vezes na vida ela podia ter se casado. Mas não se casou, e nem tentou explicar o porquê. Falou que fez algumas escolhas. E que a vida é assim. Falou, isso sim ela disse, de destino. Não há o que mudar, pois nada pode ser diferente do que é em cada momento. E rimos, mas rimos muito pois nos compreendíamos perfeitamente nesse início de noite!

De repente, reticências... ela olha para o rodapé com um dedo diante da boca. "J'ai 50 ans en plus que toi". Cinquenta anos a mais. O que isso queria dizer ali no corredor aquecido de Mme. Pierru, onde só havía nós duas que vínhamos, no segundo anterior, de rir à beça?

Em que 50 anos nos separavam? Eu não sei. Que mistério.