sábado, dezembro 20, 2014

o Bem e o Mal

Inventaram isso aí ! Inventaram essa de que existe o Bem e o Mal, como se fossem duas coisas separadas ! Não existe um e outro. Existe o mesmo. Nós vagamos sem saber entre esse plasma cósmico que nos faz ora isso, ora aquilo. Mas graças ao platonismo, ao cristianismo e ao capitalismo a gente pode forjar em paz uma ordem, ou melhor, um antagonismo nesse mundo pelo puro prazer de ser. Ser isso ou aquilo. Ser ou não ser. Eis a questão! Quem é você? Quem sou eu? Eu sou a mosca que pousou na sua sopa. Eu sou a maçã. Eu sou a serpente. Eu sou o paraíso. Eu sou você amanhã. Eu sou, ele é, nós somos. Eu, tu, ele, nós, vós, eles.

Eu, uma talibã incurável

Viver à dois é viver à mil. Isso porque o dois revela os múltiplos que, em sendo um só, dissimulam-se. Ninguém melhor do que nós mesmos para nos enganar. À dois, dia desses, fui-me apresentada à talibã que mora em mim. Ela me mostrou como destrói tudo o que vê pela frente. E também suas razões para tal coisa. Primeiro ela entra em fúria para começar a trabalhar. Os motivos para entrar em fúria são sempre razoáveis. A fúria em si não é mal. Mal é a devastação que sua incarnação produz. Me perguntei a ela se a fúria servia para alguma coisa e ela disse que sim: "serve para destruir". A fúria só serve para isso. E minha doce talibã me contou que se eu sentia fúria é porque alcançava um estado espiritual incorrigível, cuja única meta era destruir coisas. E que essas coisas eram coisas com as quais eu era incapaz de lidar. E que boa parte delas existiam na minha cabeça, apenas, fruto de experiências infelizes, mas que foram assim definidas como infelizes por narrativas que de algum modo chegaram até ao meu sentimento, seja pelos ouvidos, seja pelos olhos. Ou seja, a semente daquilo que me fazia a talibã que há em mim entrar nesse estado de transe furioso para dar cabo de seu trabalho espiritual de destruição eram narrativas  que definiam experiências pretéritas como sendo ruins. Ou seja, estados negativados no passado que de passado não tem nada, visto que suas sementes criaram raízes e, com elas, ele se presentificava.

Há aí uma questão importante: o tempo. O tempo não passa. Nós é que conseguimos ou não passar por ele. Há coisas em nós que ficam paradas no tempo. Enquanto há outras que conseguimos fazer andar. Às vezes precisamos de andor, como santos esculpidos, para podermos sair do lugar. Como imagens sacralizadas, conseguimos andar um pouco. Dessacralizar-se é dar um salto quântico, portanto. Pois dessacralizar-se é não temer a própria sorte. E a própria sorte é o próprio ato quem faz e diz.

sexta-feira, dezembro 19, 2014

Findo começo

Manhãzinha
Sabiá canta longínqua nota longa que me alcança
É ainda madrugada
Dormem todos os sentidos
Bem-Te-Vi aqui pertinho
E lá, em coro, um alarido

Manhãzinha
Entra em som, pelos ouvidos, acordar
O mundo ao redor
Um motor rasga o espaço
Abalo no frescor da sinfonia
Pura e simples, vida nua

Lua ainda na calçada
É o fim da manhãzinha.

John Atkinson Grimshaw, Spirit  of the Night, 1879 (mesmo ano em que Sir William Crookes identificou a "matéria radiante", ou plasma, um estado possível da matéria).