domingo, julho 18, 2004

Machado de Assis

Só para tornar mais claro o que eu já vinha percebendo com o auxílio amigável de Fernando Pessoa e de Clarice Lispector, vou transcrever aqui um trecho de Quincas Borba, concebido pelo nosso bruxo do Cosme Velho:
 
“Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. (...) Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver a água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. (...) A higiene é filha das podridões seculares; devemo-la a milhões de corrompidos e infectos. Nada se perde, tudo é ganho. Repito, bolhas ficam na água.”
 
O bruxo está falando do tal rizoma. Seja lá onde estiver, Clara Nunes logo logo vai dar o ar da graça pra nós quatro. Vou procurar algo gravado por ela e dar mais um ponto nesse cachecol que me aquece. “A vida é íntima”. 

domingo, julho 11, 2004

Estatuto do morador de rua

Fica decretado que do lado da rua ninguém invadirá a vida alheia com seus gestos e opiniões. Todo e qualquer morador de rua tem o direito inalienável de manter-se íntegro na sua condição de ébrio e de ser vivo. Aliás, reconhece-se integralmente o direito de ser.

[mariposa]

Pra eu poder
e só
andar nas ruas
fez-se em volta uma cidade

Para se dar
mais colorido à noite
pôs-se acima os luminosos

E pra que eu
me sinta bem enfim
nesta cidade
há-se em mim um cidadão

Portanto livre
como o que é em noite
e que enche as ruas
perseguindo luzes
acordado
ainda que em sonhos
íntegro
ainda que meio-homem
plenamente meio
mariposa

Erickson Luna

domingo, julho 04, 2004

Espírito científico da alma

Há dias em que nos permitimos a assunção de nossa ignorância sem, com isso, onerarmos qualquer parte de nossa alma. Pelo contrário. Assumirmo-nos ignorantes é o primeiro passo para a nossa integridade. "Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si é ter consciência dessa mônada íntima que é a alma" - Fernando Pessoa.

O poeta português em quase nada se distancia do saber de si propalado por um Bhaktivedanta Prabhupãda a respeito de uma Física do Eu, texto que comprei há alguns milhares de dias num ônibus municipal e que somente hoje, nesse domingo em que tiro aí uns treze anos depois, resolvi encarar. Feliz "acaso", justamente na sequência dos dias em que tenho afirmado uma certa conclusão à que cheguei: a de que somos um imenso rizoma.

A consciência que tenho de mim hoje é a certeza disso.

Apenas não sei que sentido fazemos um para o outro. Falo d'eu e você (que tem olhos e lê) e do teor fantástico desse nosso encontro. Falo no âmbito estritamente íntimo, pois a vida, para mim, se restringe radicalmente à intimidade. O resto é polidez.

Sim, não ando contente. Resisto em acreditar que sou uma alma triste, mas fato é que me entristeci com as cabeçadas que andei dando desdo o tempo em que gastava certezas à respeito de minha fortaleza. Me faltava a clareza das distinções: minha coragem (cega), meu elemento fogo tão reconhecido pelos amigos de fé e que sempre teve o mérito de me levar à algum lugar, era também os muros altos de uma fragilidade emocional, de um não saber viver aqui nesse mundo, limitada nesse corpo cravejado de palavras proferidas pelos corpos circundantes - mas nem tão passivo assim. Ele, o corpo, aqui nesse lugar, me restringe e me possibilita uma determinada existência. Minha consciência disso é a chave para a porta de saída!

Ser humano. Eu não tenho dúvidas a meu respeito. Ao mesmo tempo não me duvido e sofro por não acreditar naquele ser que esperam de mim. Não devia, entretanto, sofrer, pois este seria um ser subtraído de cada nuance de sua subjetividade sádica, violenta, calorosa, ardente, gentil, generosa, afável, musical, transcendente, lacônica, ignorante...ignorantes: isso é mais o que podemos ser para além desta sublime consciência. Falo de reconhecimento humano !

Só os burros não ignoram.