quinta-feira, maio 29, 2014

putaria e outras formas de amor


Sonhando, como sempre, esclareci uma questão importante: prostituição e amor são duas faces da mesma moeda. Pois a questão central nesse casamento não é o sexo comercial, mas o que se entende por amor.

 - Pelo amor de Deus ! 

O que se pretende, por exemplo, com essa interjeição? Que o interlocutor execute algum tipo de sacrifício, e, para que seu constrangimento por amor seja implacável, que faça isso em nome do Pai: "pelo amor de Deus, menino, pare de jogar bola na cozinha!"

Seja lá em nome de quem, "por amor" é sempre um sacrifício.

- Eu te amo.

Isso quer dizer que eu gosto de você, mas quer dizer, muito mais, que eu quero que você saiba disso, além de todas as manifestações cotidianas e diuturnas que eu possa lhe oferecer sem esperar de você nada em troca. Ao lhe dizer eu te amo, eu quero que você terminantemente saiba. Passa a ser, então, uma sentença. Por vezes, de morte. "Eu te amo".

- Pelo amor de Deus, eu te amo!

Isso é ainda mais brochante. É uma resposta desesperada a uma pergunta que não quer calar, proposta por aquele ou aquela que quer saber (precisa saber!) se tem bola rolando no campo (não basta jogar bola!). Essa "vontade de saber" cheira mal. Foucault já tinha farejado isso. É vontade de saber se é possível exercer poder. "Meu amor, eu te amo como jamais amei outro alguém!" Quer coisa melhor? Isso é juntar a fome com a vontade de comer.

Parece que já está bem claro que o tal do amor, aqui, é a flexa do cupido. Faz sangrar, fisga, escraviza, adoece, encanta, enlouquece, domina, submete, desorienta. Ou o contrário. Mas é isso. Uma ligação, tá ligado?

Prostituição é uma forma de amor. "Por que você escolheu essa vida, benzinho?", quer saber o vert galant da boca da dona no puteiro. Ele quer mesmo é saber se ela vai deixar aquele lugar fantástico, em que pode botar pra quebrar sempre que quiser, para tornar-se, por amor, a sua mulher.

Os de esquerda acham que prostituição um dia vai acabar, naquele dia de sonho em que a “sociedade” será... justa. Os de direita acham tudo uma pouca vergonha também, mas não recorrem às utopias. São bem pragmáticos: o problema é dinheiro, ou um apetite sexual desmesurado, ou falta de vergonha na cara, vá trabalhar, vagabunda!


Eu acho que prostituição só existe porque existe amor, esse conceito abstrato que, desde que o mundo se tornou romântico, baixa entre nós na forma de declaração. E é isso que todo mundo quer, declaradamente: arder nas chamas eternas do paraíso. Mandar e ser mandado. Pois é dando, que se recebe.

Judite degolando Holofernes, segundo Artemisia Gentileschi



terça-feira, maio 20, 2014

Profundezas


Vem de há muito essa insensatez eterna
Desvendada por um estrangeiro caminhante
Que por aqui aportou trazido pelo acaso de um rio

Num belo dia, sequioso de aventuras, deu a si um rendez-vous
Quem viu primeiro o gesto, sentiu primeiro o cheiro, se encantou em um passeio
Com o que seria, um dia, não mais que um desvaneio

De há muito aquilo se esperava
Era ele e era ela um e outro uma promessa de paz na eternidade
E eis que aqui na terra quente viveram duelos, noites e dias

Ele, razão vigilante. Ela, sexo ardente
Jamais se entenderam com palavras e com silêncios
E, depois, passaram a viver felizes para sempre
Na noite eterna da separação de corpos e de mentes.

Abissais



Seus olhos, água
Se não me olham
Eu mar revolto

Seu navio voador
Singrou medusas
Meu Deus, até aqui, que temo?

Do seu singrar, em minha praia
Rebentam ondas
Calmaria estranha, agora

Deus ex-machina em um navio voador
Passou por mim, na água viva
Carne, sal, sim

De que me fazes?
Do que me sou?

Logo ali, emerjo humana
Sem cais nem porto
Em um seguro mar revolto

Água-viva

Era sonho ou pesadelo
Nadar num mar de águas-vivas?
Era belo e, no entanto
Eu, na água, não sabia se ardia
O que, de fato, eu sentia?
Mas eu nadava em meio às águas-vivas
Era eu ou elas?
Quem sentia?
Eu era água viva
Éramos todas nós águas-vivas
Um mar de mágoas e agonias vivas