Preciso dar um passo atrás, bem atrás do que vivi para alcançar o que sei, não o que conheci. O exílio dos brasileiros durante a ditadura é duração que me intriga, é referência para a minha geração e para a geração de meus alunos. Tenho 40 anos e faço 41 nesse 2015. Papai acha que o período militar foi tempo de progresso no país. Ele, jovem pai de 4 crianças, engenheiro, cumpridor de suas tarefas. Política era outro assunto. Papai sempre foi técnico. E amoroso a seu modo. Lacônico, pragmático. Segundo mamãe, omisso. "Nunca trocou uma fralda", ela diz. E no entanto os dois vivem juntos há 50 anos, nesse 2015. Recentemente vi os dois comemorarem as bodas de ouro em uma capelinha na cidade de Conservatória. Chorei naquela noite ao ver meus pais se casarem 50 anos depois, com filhos e netos, todos frequentadores das dificuldades de todo e qualquer relacionamento. Todos ali. Essa é a minha história. Singela.
Mas a ditadura. Quando ouvi falar dela pela primeira vez acho que foi dentro de casa e na voz de papai. Se não foi isso, ok, mas foi isso o que até hoje é um marco para mim: papai falando da ditadura como um apoiador daquele período em que ele, provedor, pai de família, engenheiro, achava que levara uma vida mais tranquila em um período "insustentável", de tantas perturbações no mundo da política, esse mundo que ele não frequenta, a não ser para apoiar, de tempos em tempos, um ou outro candidato através do voto depositado numa urna.
Hoje vi o filme "Em teu nome". Pensei nos meus colegas, professores do instituto onde trabalho. Parecia que o filme falava da trajetória deles como exilados. Parecia que o filme falava do germe dos cursos onde leciono (planejamento urbano e gestão pública para o desenvolvimento econômico e social). Esse filme sai do Brasil, vai para o Chile; sai do Chile, vai para a Argélia; sai da Argélia, vai para a França; e da França, sai para voltar ao Brasil.
O exílio. O exílio sofrido, o exílio vivido. Quem mais bem falou dele para mim em todos os tempos foi Paulo Freire. Aquém de todo e qualquer estereótipo que desde então passou a ser construído sobre as experiências naquelas circunstâncias, Paulo Freire escreveu:
"Me parece oportuno salientar que cada exilado reage, sofre, cresce, supera dificuldades de forma diferente. Cada exilado experimenta o exílio à sua maneira. Só uma coisa é igual para todos os exilados e exiladas: estarem ou encontrarem-se num contexto de empréstimo, longe de seu contexto original." ('Gestão democrática', in À sombra desta mangueira, p.87).
Meus alunos sempre transformam os momentos atuais de grande contestação política em arremedos da época ditatorial, sobretudo através de referências estéticas. Aquele foi mesmo um grande momento, em vários aspectos. Mas me causa certo desconforto esquecer o presente. Não ver o presente e não vivê-lo plenamente com a sua estética própria, ainda que seja necessário criá-la.
Eis um legado da glória combativa de meus compatriotas que, ressignificado, me causa tristeza. Estaríamos vivendo um vazio, necessitando "repaginar" experiências do passado para legitimar - mais do que dar sentido, legitimar - as experiências contemporâneas? Por que acionar o legado do período ditatorial para falar das mazelas do hoje, do aqui e do agora?
Não vou pegar em armas. Não posso dizer o que faria se estivesse vivendo os ditos anos rebeldes, posso inventar uma resposta e mudá-la amanhã, se quiser. Não é essa a questão. A questão é: há pobreza estética nos dias de hoje? Sim. O mercado visibiliza essa miséria, embora haja riquezas muitas por aí, justamente onde não existe a pretensão da universalidade ontológica. A estética atual é uma autopsicanálise insossa que, ao alcançar meus sentidos, faz com que eu me sinta fora do meu tempo.
Sei lá. Será que isso me torna vulnerável? Não saber o que mais dizer, a não ser esse incômodo com as formas de representação da suposta rebeldia atual? Exílio.